"Todo aquele que ler estas explanações, quando tiver certeza do que afirmo, caminhe lado a lado comigo; quando duvidar como eu, investigue comigo; quando reconhecer que foi seu o erro, venha ter comigo; se o erro for meu, chame minha atenção. Assim haveremos de palmilhar juntos o caminho da caridade em direção àquele de quem está dito: Buscai sempre a Sua face."

Agostinho de Hipona



quarta-feira, 12 de setembro de 2018

“Sigam-me, e eu os farei pescadores de homens”

Por Christian Gillis 
Seguimento, igreja e serviço
Na jornada de seguir a Jesus descobre-se que há muitos peregrinos caminhando na mesma trilha de discipulado, alguns mais adiante, uns entrando agora na rota, outros parados ou caídos. Ainda que o ponto de partida em seguir a Jesus comece com uma resposta pessoal, que passa pelo coração, ao chamado para viver sob o reinado de Deus, ser discípulo de Jesus não consiste em um andar solo. 

Tudo começa com a percepção de que o tempo do governo de Deus foi inaugurado efetivamente pelo ingresso do Messias na história que desperta a fé e chama à metanoia, à mudança de mentalidade e vida (Mc 1.14-15). A partir daí é seguir a Jesus, andar após e perto do Senhor, para aprender os princípios e a cultura do reino de Deus.

Tão logo a caminhada começa encontram-se companheiros, igualmente chamados pelo Senhor, que também disseram sim ao Rei, que deixaram algumas realidades para trás e que aderiram à escola de Cristo. O convívio com outros seguidores não é meramente circunstancial, mas fundamental na formação dos discípulos, segundo a didática de Jesus. A interação de uns com os outros, a reciprocidade e o exercício da mutualidade ao andar juntos, o ouvir as perguntas, as considerações e percepções dos outros e até mesmo as disputas e os conflitos interpessoais são plataforma didática para a compreensão dos mistérios do reino de Deus e, principalmente, a constituição de um povo que tem Jesus como modelo. 

Seguir a Jesus não consiste em acumular conhecimentos e teologias, mas em tornar-se plenamente humano. Por isso o processo de discipulado é principalmente grupal. A dinâmica dos relacionamentos e vínculos com outros seguidores tem funções humanizadoras tanto da pessoa como da constituição da comunidade dos discípulos (Igreja). Aprender a amar o próximo começa no círculo dos seguidores de Jesus. Aprender a ser verdadeiro, aceitar o outro, perdoar, desenvolver companheirismo e servir se tornam algo real na esfera dos discípulos. O modo amoroso como os discípulos se relacionam entre si será o maior testemunho e a melhor contribuição que poderão transmitir ao mundo (Jo 13.35; 1Co 13).

Mas, se seguir a Cristo é relacionar-se com o Mestre e com os colegas de jornada, em uma perspectiva de serviço ao mundo, existe um problema. É que especialmente em dias de acentuado individualismo, relacionamentos virtuais e companheirismo líquido desaprendeu-se a conviver. As relações têm se tornado superficiais, instáveis, competitivas e utilitárias. Como ser discípulo e coletivo, servindo a Deus e aos outros nessa crise relacional?

É imperativo, então, que os seguidores de Jesus caminhem juntos, permaneçam unidos e redescubram a arte de relacionar-se e viver em comunidade, para que experimentem a transformação intencionada pelo Senhor, isto é, tornar-se gente saudável que tem potencial de agregar, acolher e integrar pessoas.

A natureza do seguir entabula, quase que ao mesmo tempo, um relacionamento com o Mestre, mas também o convívio horizontal uns com os outros, a inserção num corpo, para, então, transformar discípulos em agentes que servem ao reino de Deus no mundo, comunicando com amor efetivo o amor redentor revelado em Jesus Cristo.

O companheirismo e serviço são integrantes essenciais do plano de curso desenvolvido por Jesus em perspectiva missional. A missão é mais que a proclamação das realidades do reino por meio de palavras e serviço; é a plantação de uma semente de comunhão fraterna, para cuidar do mundo e produzir abrigo e restauração.


Senhor Jesus, agradecemos por abrir o caminho do discipulado e nos convidar a também tomar nossa cruz. Para prosseguir na trilha dos teus passos, ajuda-nos a ser mais dispostos e disponíveis à comunhão com os irmãos e irmãs, para que o mundo nos veja e glorifique o teu nome. Amém!


Seguimento e Imitação

Ser seguidor de Jesus é ser seu aluno ou aprendiz. Jesus ensina e exemplifica em si mesmo a sabedoria para viver a vida segundo o conselho de Deus. Constitui-se objetivo do chamado a seguir a Jesus a identificação com o caráter e a experiência do Mestre. Sua vida é um roteiro existencial para os seguidores. Discipulado, muito mais que uma metodologia para crescimento eclesial, é o cultivo de um estilo de vida.

Passar a seguir a Jesus é atravessar um portal que insere a pessoa em uma nova dimensão e perspectiva de vida – que parece estar de ponta-cabeça quando comparado ao que é valor na presente ordem desse mundo. Jesus é a referência e o paradigma a serem imitados na nova conjuntura do reino de Deus. Os princípios mais importantes comunicados pelo Senhor são aqueles que o distinguem como pessoa e o autenticam como modelo singular, arquétipos demonstrados em si mesmos.

Cada seguidor de Jesus, então, é chamado a copiar, cultivar e aplicar no seu círculo relacional as mesmas atitudes fundamentais vivenciadas por Jesus – “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (Fp 2.5). Jesus, embora sendo igual a Deus, não se apega ao seu maravilhoso estado de glória, antes, esvazia-se a si mesmo, torna-se semelhante às pessoas, gente de carne, osso e cultura, e, encontrado na forma humana, assume a condição de servo – de Deus e da humanidade –, servo que leva o compromisso com os valores do reino de Deus às últimas consequências.

É desse modo que Jesus é o modelo de pessoa inteira, que exemplifica o “negar-se a si mesmo” com o desapego, o deixar de lado condições gloriosas para servir, o esvaziar-se em função da missão e o assumir contextualmente a forma humana com a intenção de obedecer radicalmente – o “tomar a sua cruz”. Somos chamados a praticar em nossa existência essas mesmas atitudes e posturas que Jesus escolheu e assumiu. O resultado de ressurreição e glorificação também serão realidades plenas para aqueles que primeiro seguem ao Senhor no descenso, desapego, esvaziamento, encarnação, serviço e humildade.

Andar nas pegadas de Jesus significa tanto imitá-lo nas suas escolhas existenciais decisivas como também aprender a praticar e obedecer – não apenas saber – a todos os mandamentos que ordenou. A maior marca da pessoa, vida, ensinos e ministério de Jesus foi o amor. Foi o amor, dirigido a um mundo que não merecia, que o moveu para a cruz. Assim, Jesus se tornou a expressão exata do amor, a imagem visível do que é amar e servir. Jesus, então, designou aos seus seguidores o mandato de também ser gente prestativa, que toma a iniciativa de fazer o bem e considera o interesse dos outros – não de buscar as vantagens, o centro ou o primeiro lugar.

Quando Jesus enviou seus seguidores ao mundo, como havia sido enviado pelo Pai (Jo 20.21), impulsionou seus discípulos a atravessar sem medo todo tipo de fronteira e barreira, caminhando missionalmente em direção a todas as pessoas e povos a partir dos marcos do altruísmo, do serviço, da unidade, de modo a reproduzir seu modo de vida e tipo de ministério por toda a terra. Isso significa que cada seguidor e o conjunto de seguidores de Jesus de Nazaré manifestam o amor de Jesus rejeitando todas as formas de xenofobia e racismo, onde quer que transitem. A peregrinação cristã expressa amor na forma de integração em vez de segregação, inclusão em vez de exclusão, pluralidade em vez de divisão, tolerância em vez de violência, parceria em vez de imposição da vontade, solidariedade em vez de desqualificação do outro. Esse é o modelo que as pegadas de Jesus ensinam.


Deus, eu preciso de graça. Graça para ser cheio da lógica do teu reino. Graça para imitar o Filho, Jesus. Graça para agir conforme o exemplo, o paradigma do Senhor. Graça para refletir os valores eternos aqui no meu tempo e cultura. Por mim mesmo não dou conta. Amém!
• Christian Gillis é casado com Juliana e pai de três filhos. É pastor da Igreja Batista da Redenção, participa do conselho coordenador da Aliança Evangélica e integra a governança de Miqueias Brasil.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

“Aprendam comigo”

Por Klênia Fassoni
Para seguir a Jesus é preciso que o conheçamos. E é importante que o conheçamos por nós mesmos, direto da fonte – e não apenas pelo que os outros nos transmitiram. Isso nos ajuda a tirar anos de poeira e tradição e também os modismos.

Quem é Jesus? Para muitos a interrogação ainda persiste. O próprio Jesus questionou seus discípulos: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”. Foi Pedro – iluminado pelo Espírito – que disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.15-16), declaração feita antes da transfiguração, quando ouviria do próprio Deus: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi” (Mt 17.5). 

Uma boa forma de aprender mais sobre o Jesus das Escrituras é ler atenta e seguidamente os Evangelhos. Comece por Marcos, destacando todos os verbos que se relacionam ao sujeito Jesus. Depois, passe para João, destacando todas as palavras que Jesus disse. Você verá: o que Jesus fez, como agiu, o que viu, o que sentiu, por onde e com quem andou, o que e com quem falou, o que ensinou, a quem elogiou e a quem confrontou, com quem dividiu a mesa, a quem abençoou com cura e alívio, a quem resistiu ou condenou, como e quando demonstrou poder, o que lhe provocou tristeza ou dor ou raiva, com o que se ocupou, como usou o tempo de que dispunha, como orou, quais foram as suas lealdades e prioridades. Você aprenderá sobre Jesus não só por tudo que fez, mas também por tudo que ele deixou de fazer, não só pelo que ele disse, mas também pelo seu silêncio.

Você perceberá que algumas vezes Jesus foi claro na ordem para imitá-lo: como no lava-pés (“Façam como eu fiz”, Jo 13.15), na oração dominical (“Vocês, orem assim”, Mt 6.9), na prática do amor (“Assim como eu os amei, amem também uns aos outros”, Jo 13.34). Em outras ocasiões, ele se referiu aos antimodelos: “Os governadores dos povos pagãos têm autoridade sobre eles [...] Mas entre vocês não pode ser assim” (Mt 20.25-26); “Quando orarem… quando ofertarem… quando jejuarem… não façam como os hipócritas” (Mt 6.2, 5, 8, 16); e “não andeis ansiosos… como os pagãos” (Mt 6.32).

Você notará que o principal objetivo do chamado de Jesus é para uma vida com ele, a partir do fato de termos sido feitos filhos de Deus. A convocação dos doze é significativa: “Então, designou doze para estarem com ele e para os enviar a pregar” (Mc 3.14). Ele não nos convida para o cumprimento de tarefas, mas para o seguirmos na normalidade da vida. Em sua despedida, Jesus suplica: “Pai, quero que, onde eu estiver, aqueles que me deste estejam comigo” (Jo 17.24) e declara que não ficaremos sós: “E eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Encorajador, que nunca os deixará” (Jo 14.16, NVT).

É alentador saber que a intenção de nos tornar parecidos com Jesus é do próprio Deus: “Até que todos alcancemos a unidade que a fé e o conhecimento do Filho de Deus produzem e amadureçamos, chegando à completa medida da estatura de Cristo [...] tornando-nos, em todos os aspectos, cada vez mais parecidos com Cristo, que é a cabeça” (Ef 4.13, 15, NVT).

Graças a Deus que – assim como Pedro – podemos contar com a revelação do Espírito, sobre quem Jesus declarou: “Ele lhes ensinará todas as coisas e os fará lembrar tudo que eu lhes disse” (Jo 14.26, NVT).


Espírito, continua a nos lembrar da pessoa de Jesus, aquece o nosso coração com a tua presença. Ajuda-nos a deixar pegadas como as de Cristo, que apontam para Deus.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

“Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo”

Por Jonathan Simões Freitas
Mais uma parada para refletir: se um artista fosse pintar um quadro que representasse a sua caminhada cristã, de que forma ele a retrataria? Seria uma imagem cruciforme, como propôs Jesus aos seus discípulos, isto é, seria uma pessoa pendurada em uma cruz, derramando a sua vida pelos que estivessem próximos, com os olhos voltados para o céu   ̶  como o Mestre (Lc 23.46-48)? Contemplemos, por um momento, esse impressionante quadro.

Uma pessoa pendurada em uma cruz

Não sentada no trono de si mesma. Não acomodada no conforto. Não como Pilatos nem como Herodes, confortáveis em seus palácios enquanto o Rei dos reis era levantado no Calvário (Lc 23). Não como Lísias, Félix, Festo ou Agripa, sentados para julgar um cristão, em vez de se colocarem de pé para honrá-lo (At 21-26).
Não como um “reizinho”, cujo deus é o umbigo; inimigo da cruz, antagônico a Cristo (Fp 3.18). Não tentando impor a sua vontade pela força, como o gentio Faraó (Êx 14.5) ou o judeu Jeroboão (1Rs 13.4).

Mas, sim, como uma pessoa que foi levantada e disposta a ser pregada e suspendida, nua, em uma cruz. Dos braços cruzados do legalismo (Mt 23.1-4) e acorrentados pela libertinagem (2Pe 2.10, 19) para os braços abertos da liberdade (Gl 5.13-14). Como o Cristo Redentor; como o pai do filho pródigo (Lc 15.20). Da servidão libertária para a libertação serviçal.

Uma pessoa suspendida entre o céu e a terra. Da segurança dos pés no chão para a tensão no ar. E que, ainda assim, não desce da cruz. Que se apoia naquele que não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8.20). Que prefere ser sustentado sobre as águas pela Palavra do que pelo mero material de uma obra humana (Mt 14.29).

Nua. Deixando todo o peso aos pés da cruz, para seguir, sem sobrecarga no coração, o caminho de Jesus. Como o Mestre, só com um avental (Jo 13.4) ̶ sem roupas resplandecentes (Lc 23.11). Livre de todo pecado ou peso desnecessário, que poderia embaraçar a caminhada (Hb 12.1). Não levando nada que não a deixe leve (Mt 10.9-10), a fim de poder seguir, sem impedimentos, para onde o Espírito soprar (Jo 3.8; At 8.39).

Derramando a vida pelo próximo

Não retendo a vida para si mesmo. Mas com as mãos abertas, prontas para receberem as fincadas (Dt 15.7; Hb 10.34). Afinal, “mais bem-aventurada coisa é dar” (At 20.35). Como resumiu Jim Elliot: “Não reter o que não pode manter, para ganhar o que não pode perder”.
Com o próprio sangue escorrendo, para regar o arredor. Irrigação vívida para a semente da Palavra. “O sangue dos mártires é a semente da igreja.” A motivação? Ver o fruto dessa “jardinagem” (Is 53.11), colocando a felicidade na felicidade do outro (Hb 12.2). Afinal, “Deus ama ao que dá com alegria” (2Co 9.7). Como resumiu John Piper: “Amar amar”. Senão, nenhuma entrega se aproveitaria (1Co 13.3).

Mas morrendo para vivificar! Não mera morte. Mas mortificação da carnalidade, com as lágrimas e o suor do Getsêmani. Uma entrega não a partir da falta e da carência, incompleta ̶ como no triste suicídio. Mas, sim, a partir da plenitude que transborda, como na jubilosa ressurreição.

Com os olhos voltados para o céu

Para o “Pai”, a fonte e o alvo da vida: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Tendo como motivação última viver a vida como dádiva e oferta de fé, devolvida a Deus com esperança (2Co 2.14), isto é, com o amor ao próximo contextualizado e qualificado pelo amor a Deus. Afinal, na Bíblia, o amor é esse fluxo da vida divina: de Deus, para o coração, para o próximo, de volta para Deus. Não é à toa que, no prenúncio batismal da cruz, esse amor foi anunciado e sinalizado com o Espírito em forma de pomba e a declaração: “Meu Filho Amado!”.
Que Deus nos dê essa graça do Espírito Santo de, amados, amarmos ̶ para que o retrato de nossa vida seja como o retrato da vida do Mestre: crucificado (1Co 1.23), olhando para a ressurreição (1Co 15.58)!

“Sim, eu amo a mensagem da cruz! Até morrer eu a vou proclamar! Levarei eu também minha cruz, até por uma coroa trocar!” Afinal, “o viver é Cristo, e o morrer é ganho” (Fp 1.21).

Ó Senhor,
Para mim,
Cada vez mais,
Viver é viver para o Senhor.
Mas morrer ainda não é lucro.
Desequilibra de vez
Esse meu balanço contábil dos afetos.
Para que o genuíno extremo dos seus discípulos
Seja a minha verdadeira estabilidade!

• Jonathan Simões Freitas, 33 anos, é casado com Thalita e pai de Manuela. É professor na UFMG e atua na Igreja Esperança, na ABC², na Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares (AKET) e no L’Abri. Escreve no medium.com/@jonathansf.bra

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

“Permaneçam em mim”

Por William Lane
O convite para seguir a Jesus implica aceitá-lo como guia. Porém, implica muito mais do que isso. Seguir a Jesus não é simplesmente o mesmo que seguir um líder religioso ou um respeitável mestre aceitando os seus valores e ensinamentos, e se propor a imitá-lo e colocar em prática os seus ensinamentos. Seguir a Jesus envolve permanecer nele.

Seguir a Jesus sugere movimento, algo não estático, mas uma jornada, um andar constante. Entretanto, essa caminhada só é possível se permanecermos nele. Não um permanecer fixo como alguém que chega a certo lugar e ali permanece (Lc 24.29; Jo 10.40). Não significa chegar lá. Significa continuar no caminho e, ainda, estar unido com Cristo e perseverar no caminho. Permanecer em Cristo é, paradoxalmente,“andar assim como ele andou” (1Jo 2.6).

Mais da metade das ocorrências da expressão “permanecer” no Novo Testamento está no Evangelho e nas Epístolas de João. É um tema-chave que corresponde à ideia de Paulo da habitação de Cristo no crente (Rm 8.9-11).1 Entre os vários aspectos apontados por João, podemos ver que permanecer em Cristo envolve estar em íntima união com ele, viver a vida dele em nós e produzir os frutos dele.

Permanecer em Cristo é estar em união com ele do mesmo modo como ele está em união com o Pai. Jesus declara que as palavras que ele diz e as obras que faz não são dele, mas do Pai, que nele permanece (Jo 14.10). Essa mesma união do Filho com o Pai deve representar a união do crente com Deus e Jesus. Assim como o Pai está em Cristo e Cristo está no Pai, também o crente tem de ser um em Cristo (Jo 17.21-23).

A união com Cristo significa não apenas que ele vive em nós, mas também que a nossa vida não é nossa. Seguir a Jesus é deixar que a vida de Jesus floresça em nós. Paulo expressa isso nas seguintes palavras: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20, NVI). Como coloca A Mensagem, “meu ego não ocupa mais o primeiro lugar. Pouco me importa parecer justo ou ter um bom conceito entre vocês: não estou mais tentando impressionar Deus”. À medida que deixamos o Espírito de Cristo (1Jo 3.24; 4.13) e a sua palavra (Jo 8.31; 15.7; 1Jo 2.24) habitarem em nós, permanecemos nele.

João ilustra bem isso com a figura da videira e seus ramos. Jesus é a videira, nós somos os ramos. Nossa vida depende da seiva do tronco. Sem Jesus “vocês não podem fazer coisa alguma” (Jo 15.5, NVI). O ramo produz fruto porque permanece na videira. O fruto não é do ramo, mas da videira. Permanecer em Cristo redunda em carregar o fruto que ele produz em nós. Não produzimos o nosso fruto, isto é, nossas aspirações, ativismo e realizações. Somos instrumentos do fruto que ele produz em nós.

As consequências desse permanecer em Cristo é viver no amor e afastar-se do pecado, pois quem permanece nele não vive pecando (1Jo 3.6, 9). Amar a Deus e o próximo são termômetros de Cristo em nós, pois quem não ama permanece na morte (1Jo 3.14).

Em época de crescente individualismo e narcisismo é estranho dizer que temos de morrer para nós mesmos e deixar Cristo viver em nós. O fato é que, se formos sinceros, perceberemos que, mesmo no individualismo, estamos tentando viver a vida de um outro, isto é, aquilo que a sociedade, os amigos e os valores modernos nos dizem que é certo. Buscamos firmar nossa identidade sobre os pilares da beleza física, da intelectualidade, do sucesso profissional, dos bens materiais e, talvez, até do altruísmo moderno. Deixamos de viver a nossa vida. Tomás de Kempis diz: “Em escravidão vivem todos os ricos e egoístas, os cobiçosos, curiosos, que gostam de vaguear, buscando sempre as delícias dos sentidos e não as de Jesus Cristo”.2

Seguir a Jesus é também deixar de viver nossa vida, permanecer nele e deixar que Cristo viva em nós. É um permanecer interior. Não é seguir exteriormente costumes, normas, hábitos, rituais e aparências. É estar nele e ele, em nós.


“Deus, dá-me força para resistir, paciência para sofrer, constância para perseverar.”Tomás de Kempis

Notas
1. Verbrugge, Verlyn D. Novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 384-385.
2. Kempis, Tomás de. Imitação de Cristo. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 103.

• William Lane é pastor presbiteriano, doutor em Antigo Testamento e professor acadêmico da Faculdade Teológica Sul-Americana, em Londrina, PR.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

"Eu sou o Caminho"

Por Klênia Fassoni
Seguir a Jesus tem dois sentidos básicos, podendo talvez ser resumidos na nossa relação com ele, Jesus como Salvador e Jesus como Senhor. Não há como segui-lo sem antes reconhecê-lo como Redentor. Essa é a primeira e imprescindível parada. Sem ela, é impossível seguir em frente.

Não se pode apenas “admirar” Jesus, ainda que ele seja admirável e exerça forte atração sobre as pessoas. John Stott adverte: “Como ele queria ser lembrado? Não por seu exemplo ou seu ensino, não por suas palavras ou obras, nem mesmo por seu corpo vivo ou pelo sangue que corria em suas veias, mas por seu corpo entregue e seu sangue derramado no sacrifício da cruz”.1

Admirá-lo e não aceitar o que ele diz sobre si próprio é um disparate. E ele declarou: “Eu sou o Caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6), em um dos mais enfáticos “Eu Sou” que proferiu. Todo seguidor de Cristo deve possuir em sua biografia um “evento” divisor de águas – ocasião em que deixa de ser quem era e passa a ser um novo homem ou uma nova mulher, um seguidor do Caminho. Costumamos chamar esse evento de conversão, mas curiosamente a palavra conversão quase não aparece no Novo Testamento. Um dos poucos textos é este: “Não vim chamar à conversão os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5.32, Versão Católica). Mas uma leitura em busca de “viradas” mostra que, na maior parte dos relatos, as experiências são contadas a partir de um encontro com Jesus, seguido de um reconhecimento dele como o Filho de Deus e posterior seguimento. O assentimento primário é o encontro com o Redentor, em quem achamos o perdão para os pecados, marcando assim um novo começo: “Deus se reconciliou com o mundo por meio do Messias, permitindo um novo começo pela oferta de perdão dos pecados” (2Co 5.19, A Mensagem).

E há muitas formas de descrever esse novo começo: a entrada no Caminho que leva ao Pai; a satisfação da fome existencial e espiritual por meio do Pão da Vida (Jo 6.35); a saciedade da sede interior por meio da Água Viva; a entrada pela Porta das Ovelhas (Jo 10.7); o fim da escuridão pela aproximação da Luz do Mundo (Jo 8.12); a volta do filho rebelde à casa do Pai; o reconhecimento da voz do Bom Pastor pelas ovelhas que andavam errantes seguindo seu próprio caminho (Is 53.6; Jo 10.11).

Depois de termos chegado até a cruz de Cristo, estamos aptos para avançar e recebemos um novo desafio: tornarmo-nos como Cristo! E não há porque voltar atrás. Como declarou Pedro, “Senhor, para quem iremos? Só o Senhor tem as palavras de vida verdadeira, de vida eterna” (Jo 6.68).


Ó Deus, saber que Jesus – que é o nosso destino – é também o que vai adiante de nós, nosso acompanhante e nosso Caminho nos enche de esperança!

Nota1. A Bíblia toda, o ano todo; meditações diárias de Gênesis a Apocalipse. Viçosa: Ultimato, 2007. p. 264.

Fonte: [ Revista Ultimato edição 373 Setembro-Outubro 2018 ]



terça-feira, 22 de maio de 2018

A Piedade e a Igreja

Dr. Joel Beeke

pietas de Calvino não subsistia à parte das Escrituras ou da igreja. Pelo contrário, era fundamentada na Palavra e nutri­da na igreja. Embora tenha rompido com o absolutismo da Igreja de Roma, Calvino tinha um elevado ponto de vista sobre a igreja. "Se não preferimos a igreja a todos os outros objetos de nosso in­teresse, somos indignos de ser contados como membros da igreja", ele escreveu.

Agostinho dissera: "Aquele que se recusa a ter a igreja como sua mãe não pode ter a Deus como seu Pai”. Calvino acrescentou: "Não há outra maneira de entrarmos na vida, se esta mãe não nos conce­ber em seu ventre, der-nos à luz, alimentar-nos em seu seio e, por último, não nos manter sob os seus cuidados e orientação, até que, despidos desta carne mortal, nos tornemos como os anjos". À parte da igreja, há pouca esperança de perdão dos pecados ou salvação, Calvino escreveu. Sempre é desastroso deixar a igreja.1

Calvino ensinava que os crentes estão enxertados em Cristo e sua igreja, pois o crescimento espiritual ocorre na igreja. A igreja é a mãe, educadora e nutridora de todo crente, visto que o Espírito Santo age na igreja. Os crentes cultivam a piedade por meio do Espí­rito Santo mediante o ministério de ensino da igreja, progredindo da infância espiritual à adolescência e à maturidade em Cristo. Eles não se graduam na igreja enquanto não morrem.2 Essa educação vitalícia é oferecida numa atmosfera de piedade genuína, uma at­mosfera na qual os crentes cuidam uns dos outros em submissão à liderança de Cristo.3 Essa educação encoraja o desenvolvimento dos dons e do amor uns dos outros, uma vez que somos "constrangidos a receber dos outros".4

crescimento na piedade é impossível sem a igreja, porque a piedade é fomentada pela comunhão dos santos. Na igreja, os cren­tes "se unem uns aos outros na distribuição mútua dos dons". 5 Cada membro tem o seu próprio lugar e dons para serem usados no corpo.Idealmente, todo o corpo usa esses dons em simetria e propor­ção, sempre reformando e desenvolvendo em direção à perfeição.7

A PIEDADE DA PALAVRA

A Palavra de Deus é central ao desenvolvimento da piedade no crente. A piedade genuína é uma "piedade da Palavra". O modelo relacional de Calvino explica como.

A verdadeira religião é um diálogo entre Deus e o homem. A parte do diálogo que Deus inicia é a revelação. Nisso, Deus vem ao nosso encontro, fala conosco e se nos torna conhecido na pre­gação da Palavra. A outra parte do diálogo é a resposta do homem à revelação de Deus. Essa resposta, que inclui confiança, adoração e temor reverente, é o que Calvino chama depietas. A pregação da Palavra nos salva e nos preserva, enquanto o Espírito nos capaci­ta a apropriar-nos do sangue de Cristo e responder-Lhe com amor reverente. Por meio da pregação de homens dotados de poder pelo Espírito Santo, "a renovação dos santos se realiza, e o corpo de Cris­to é edificado", disse Calvino.8

A pregação da Palavra é o nosso alimento espiritual e o remédio para nossa saúde espiritual. Com a bênção do Espírito, os pastores são médicos espirituais que aplicam a Palavra à nossa alma, assim como os médicos terrenos aplicam remédio ao nosso corpo. Com a Palavra, esses médicos espirituais diagnosticam, prescrevem re­médios e curam doenças espirituais naqueles que estão contami­nados pelo pecado e pela morte. A Palavra pregada é um instru­mento para curar, limpar e tornar frutífera nossa alma propensa a enfermidades.9 O Espírito, ou "o ministro interior", desenvolve a piedade usando o "ministro exterior" na pregação da Palavra. Con­forme disse Calvino, o ministro exterior "proclama a palavra falada, e esta é recebida pelos ouvidos", mas o ministro interior "comunica verdadeiramente a coisa proclamada... que é Cristo".10

Para desenvolver a piedade, o Espírito usa não somente o evan­gelho para produzir fé no profundo da alma dos seus eleitos, como já vimos, mas também a lei. A lei promove a piedade de três maneiras:

1. A lei restringe o pecado e promove a justiça na igreja e na socie­dade, impedindo que ambas cheguem ao caos.

2. A lei disciplina, educa, convence e nos move de nós mesmos para Jesus Cristo, o fim e o cumpridor da lei. A lei não pode nos levar a um conhecimento salvifico de Deus em Cristo. Pelo contrário, o Espírito Santo usa a lei como um espelho para nos mostrar nossa culpa, nos privar da esperança e trazer-nos ao arrependimento. Ela nos conduz à necessidade espiritual que gera a fé em Cristo. Esse uso convencedor da lei é essencial à pie­dade do crente, pois impede a manifestação da justiça própria, que é inclinada a se reafirmar até no mais piedoso dos santos.

3. A lei se torna a norma de vida para o crente. "Qual é a norma de vida que Deus nos outorgou?" Calvino pergunta no catecismo de Genebra. E responde: "A sua lei". Posteriormente, Calvino disse que a lei "mostra o alvo que devemos ter em vista, o objetivo que devemos perseguir; e que cada um de nós, de acordo com a medida de graça recebida, pode se esforçar para estruturar sua vida em harmonia com a mais elevada retidão e, por meio de es­tudo constante, avançar cada vez mais, ininterruptamente.¹¹

Calvino escreveu a respeito do terceiro uso da lei na primeira edição de suas Institutas: "Os crentes... se beneficiam da lei porque dela aprendem mais completamente, cada dia, qual é a vontade do Senhor... Isto é como se um servo, já preparado com total disposi­ção de coração para se recomendar ao seu senhor, tivesse de des­cobrir e considerar os caminhos de seu senhor, para se conformar e se acomodar a estes. Além disso, embora sejam impulsionados pelo Espírito e mostrem-se dispostos a obedecer a Deus, os crentes ainda são fracos na carne e prefeririam servir ao pecado e não a Deus. Para a nossa carne, a lei é como uma chicotada em uma mula ociosa e obstinada, uma chicotada que a faz animar-se, levantar-se e dispor-se ao trabalho".¹²

Na última edição das Institutas (1559), Calvino é mais enfático a respeito de como os crentes se beneficiam da lei. Primeiramente, ele diz: "Este é o melhor instrumento para os crentes aprenderem mais completamente, a cada dia, a natureza da vontade do Senhor, a qual eles aspiram, e para confirmá-Los no entendimento dessa vontade". Em segundo, a lei faz o servo de Deus, "por meio de me­ditação freqüente, ser despertado à obediência, ser fortalecido na lei e restaurado de um caminho de transgressão". Calvino conclui que os santos devem prosseguir desta maneira, "pois o que seria menos amável do que a lei, com importunações e ameaças, atribular as almas com temor e as afligir com pavor?"¹³

O ponto de vista que considera a lei primariamente como um guia que estimula o crente a apegar-se a Deus e a obedecer-Lhe ilustra outra instância em que Calvino difere de Lutero. Para Lute­ro, a lei é primariamente negativa. Está ligada ao pecado, à morte e ao diabo. O interesse predominante de Lutero é o segundo uso da lei, o uso convencedor ― mesmo quando ele considerava o pa­pel da lei na santificação. Por contraste, Calvino entendia a lei como uma expressão positiva da vontade de Deus. Como disse John Hesselink: "O ponto de vista de Calvino podia ser chamado de deuteronômico, porque ele entendia que o amor e a lei não são contrários, e sim correlatos".14 Para Calvino, o crente segue a von­tade de Deus, não motivado por obediência obrigatória, e sim por obediência agradecida. Sob a tutela do Espírito, a lei produz grati­dão no crente; e esta conduz à obediência amorosa e à aversão ao pecado. Em outras palavras, para Lutero o propósito primordial da lei era ajudar o crente a reconhecer e confrontar o pecado. Para Calvino, o propósito primário da lei era levar o crente a servir a Deus motivado por amor.15

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Extraído do livro Vencendo o Mundo, Joel Beeke, Editora FIEL, pgs. 53-57
Notas:
1.Institutes. 4.1.1, 3-4. Ver também BEEKE, JoelR. Gloriouslhings of Thee Are Spoken: The Doctrine of the Church. In: KISTLER, Don (Ed.). Onward, christian soldiers: protestants affirm the church. Morgan, Pa.: Soli Deo Glory, 1999. p. 23-25.
2.Institutes.4.1.4-5.
3.Commentary, Salmos 20.10.
4.Commentary, Romanos 12.6.
5.Commentary, 1 Coríntios 12.12.
6.Commentary, 1 Coríntios 4.7.
7.Commentary, Efésios 4.12.
8.Commentary, Salmos 18.31; 1 Coríntios 13.12. Institutes, 4.1.5, 4.3.2.
9.Sermons ofM. John Calvin, on the Epistles ofS. Paule to Timothie and Titus (1579). L. T. (Trad.). Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1983. Comentário em 1 Timóteo 1.8-11. Daqui para frente a nota diráSermon e citará o texto bíblico. Reimpressão fac-símilar.
10.REID, J. K. S. (Ed.). Calvin: theological treatises. Philadelphia:
Westminster Press, 1954. p. 173. Ver também ARMSTRONG, Brian. lhe Role of the Holy Spirit in Calvin's Teaching on the Ministry. In: DEKLERK, P. (Ed.). Calvin and the Holy Spirit. Grand Rapids: Calvin Studies Society, 1989. p. 99-111.
11.BEVERIDGE, Henry; BONET, Jules (Eds.). Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapids: Baker, 1983. 2:56,69. Reimpressão.
12.Institutes of the Christian religion: 1536 edition, p. 36.
13.Institutes. 2.7.12. Calvino extrai dos salmos de Davi grande apoio para esse terceiro uso da lei. Ver também Institutes 2.7.12 e Comentário no livro dos Salmos, Valter Martins (Trad.), Vol. 4. (São José dos Campos: Editora Fiel, prelo 2009).
14.HESSELINK, I. John. Law - lhird Use of the Law. In: McKIM, Donald K. (Ed.). Encyclopeadiaof the reformed faith. Louisville:
Westminster/ John Knox, 1992. p. 215-216. Ver também:
- DoWEY JR., Edward A. Law in Luther and Calvin. Theology Today, 41.2 (1984).
- HESSELINK, I. John. Calvin's concept of the law. Allison Park, Pa.:
Pickwick, 1992. p. 251-262.
15.BEEKE, Joel; LANNING, Jay. Glad Obedience: The Third Use of the Law. In: KISTLER, Don.Trust and obey: obedience and the Christian. Morgan, Pa.: Soli Deo Gloria, 1996. p. 154-200.
- GODFREY, W. Robert. Law and Gospel. In: FERGUSON, Sinclair B.; WRIGHT, David F.; PACKER, J. I. (Eds.).New dictionary of theology. Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1988. p. 379.

Fonte: [ Os Puritanos ]